O que dizem sobre nós
“Olha a bola, Manel!” ou o trauma de uma criança que perde uma amiga e ainda tem de levar com pessoas a cantar sobre isso.
Há uns dias cheguei a casa e, ao entrar na sala, reparei que a televisão estava ligada no YouTube. Modernices, pensarão muitos. Sim, sem dúvida. Mas modernices que, confesso, dão bastante jeito. A televisão estava a dar música ao Tomás. E apesar do rebento gostar muito do “Rumours” dos Fleetwood Mac, não era a voz da Stevie Nicks que soava na sala. Era sim uma sequência de musicas infantis portuguesas que todos nós aprendemos e cantámos quando éramos miúdos, tal como os nossos pais. E os pais deles. E os pais dos pais dos nossos pais. Acho que já deu para perceber. Isso fez-me sorrir ao pensar na forma como certas musicas conseguem permanecer inalteradas ao passar dos anos. São as chamadas canções Betty Grafstein. Sentei-me no sofá, enquanto olhava para o miúdo na sua espreguiçadeira e esperava por alguma reacção aos vários títulos do nosso cancioneiro infantil. Mas quem esboçou alguma reacção não foi ele. Fui eu. Acho que, pela primeira vez na vida, escutei com outra atenção as letras de músicas que, recorde-se, são para crianças, mas que são, na sua essência, poemas de uma profunda negritude. Podia abordar a letra do “Que Linda Falua” ou do “Naquela Linda Manhã”. Mas hoje escolho outro clássico.
Analisemos o poema “Olha a bola, Manel”.
Eis a história de um menino que, como qualquer outro, tem uma bola. Uma bola que, provavelmente, leva diariamente para a escola para futeboladas com amigos no recreio. Ou, se calhar, é uma companhia para momentos em que o jovem Manel se sente sozinho, passando esses minutos rematando contra uma parede, fingindo que marca golos na baliza do Estádio de Alvalade. No fundo, a bola do Manel é uma amiga do Manel. E o que sucede na canção?
“O Manel tinha uma bola,
que rolava pelo chão
na calçada ela rebola,
deu-lhe uma dentada um cão”
Desgraça numero 1. Estava o pobre miúdo a jogar com a sua amiga na rua e eis que surge, vindo do nada, um infame canídeo que decide afiambrar o querido esférico com uma dentada. Mas pronto. Haja esperança! Há bolas que, mesmo com uma dentada, conseguem sobreviver e manter a sua capacidade inata de… ser bola. Seria esta uma dessas bolas? Uma bola sobrevivente, ficando apenas com uma marca de guerra? Não. Chegamos à desgraça numero 2.
“olha a bola Manel,
olha a bola Manel
nunca mais ninguém a viu”
Não chegava o Manel assistir a uma dentada do cão? Não. Além do vil bóbi morder a sua bola querida, o miúdo ainda fica sem a dita cuja. Constate-se que ainda poderia haver a hipótese da criança recuperar a sua amiga redonda, hipótese essa prontamente negada pela frase simples e seca “nunca mais ninguém a viu”. É um “esquece, puto. Não adianta procurares. Já foste.” É a desgraça Vidal Sassoon: 2 tragédias numa só. Parece-me claro que, neste momento, o Manel precisa de consolo. E como se dá consolo ao jovem?
“O Manel tinha uma bola
mas agora não tem não
e a gente a ver se o consola
vai cantar esta canção”
Não, meus senhores. Cantar esta canção não vai consolar o Manel. Vai sim recordar à pobre criança que ele tinha uma bola e que já não a tem, depois de no mesmo dia ter sido mordida por um cão e de ter desaparecido para todo o sempre!!!! E sempre que a cantarem, ele não vai ficar consolado. É a mesma coisa que ouvir Radiohead para nos sentirmos melhor: simplesmente não resulta. #paremdecantaristoaoManel.
Vasco Palmeirim